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Cypher preferiu voltar à Matrix, preferiu o sonho de ser rico e famoso. Para ele esta era uma realidade melhor do que a realidade 'real'.
Na verdade, o modelo não tem que ser 'realista', isto é, não tem que ter semelhança física com a 'realidade'.
Lembrar que 'modelo' é apenas uma descrição útil, criada para tentar explicar as correlações observdas entre nossas percepções (fatos).
Assim, por exemplo, ninguém pensa que o núcleo atômico efetivamente seja uma gota líquida, embora seja útil pensar assim no contexto desse modelo. Da mesma forma, Helmholtz quando propos seu modelo tricromátrico, não tinha como saber que a retina efetivamente contém três tipos de receptores (cones) para cor, cuja descoberta só aconteceu mais de 70 depois.
Também não se deve confundir o modelo criado na mente, interno, um modelo mental, com um modelo físico, nem com um modelo matemático, ambos externos.
Modelo físico é uma réplica com existência física, um dispositivo, podendo ser em escala, geralmente utilizado para verificar seu comportamento perante fenômenos físicos, visando prever ou compreender o comportamento do objeto modelado perante situações semelhantes. É sempre uma representação simplificada da realidade ou de um fragmento do sistema modelado. Inclui os protótipos, as maquetes etc.
Fonte: http://www.alexjfischer.com/portfolio/miller-gallery-reentry-flexible-facade/
Por outro lado, modelo matemático é, também, uma representação simplificada da realidade ou de um fragmento do sistema modelado, mas de forma matemática, não física. Ou seja, modelagem matemática consiste na tentativa de se descrever matematicamente um fenômeno ou sistema, via equações diferenciais, parciais e/ou ordinárias, autômatos celulares etc.
Fonte: http://dx.doi.org/10.4067/S0718-07642006000100007
Há que distinguir aqui entre experimento e observação.
"O simples fato do caráter indireto das determinações do real científico já nos coloca num reino epistemológico novo. Por exemplo, enquanto se tratava, num espírito positivista, de determinar os pesos atômicos, a técnica - sem dúvida muito precisa - da balança bastava." (BACHELARD, O Novo Espírito Científico)
Uma balança deste tipo é de operação muito simples e direta: coloca-se o objeto num prato e colocam-se pesos (massas) no outro prato até que o equilíbrio, indicado pelo ponteiro, seja alcançado; basta, então, verificar o total da massa no prato para inferir que será igual à massa do objeto. São dados diretos, que podem servir de fonte para outras operações de transformação: cálculos, gráficos, etc.
Mas a evolução da Ciência depende de e, ao mesmo tempo, propicia avanços tecnológicos nos seus próprios instrumentos.
"Uma medida precisa é sempre uma medida complexa; é, portanto, uma experiência organizada racionalmente." (BACHELARD, O Novo Espírito Científico).
"[…] quando no século XX se separam e pesam os isótopos, é necessária uma técnica indireta. O espectroscópio de massa, indispensável para esta técnica, fundamenta-se na ação dos campos elétricos e magnéticos. É um instrumento que podemos perfeitamente qualificar de indireto se o compararmos à balança." […] (BACHELARD, O Novo Espírito Científico)
Nele, as partículas são aceleradas e colimadas por um campo elétrico E e um magnético B e emergem num outro campo magnético B' que encurva suas trajetórias pela força de Lorentz com raios R1 e R2 que dependem de suas massas m1 e m2 segundo a equação
Quanto maior a massa, maior o raio de curvatura da trajetória.
Mas, como Bachelard alerta,
"Na realidade, os dados são aqui resultados. As trajetórias que permitem separar os isótopos no espectroscópio de massa não existem na natureza; é preciso produzi-las tecnicamente. São teoremas reificados [grifo nosso]." (BACHELARD, O Novo Espírito Científico).
Os 'dados' obtidos aqui já são resultados de operações complexas, e, mais grave, resultam de nossa crença na validade de uma série de teorias que embasam e antecedem a operação do aparelho de medida.
A experimentação, que servia para o empirista verificar a teoria, agora baseia-se ela mesma em teorias. A experiência está 'contaminada' por teorias, como já dizia Whewell em 1837, antecipando o atual conceito de theory-ladenness.
Assim, antes de aceitar as observações telescópicas é preciso olhar para as lentes do telescópio, a forma como é construído de modo a garantir que o telescópio está apontando na direção certa, que a luz viaja pelo espaço em uma linha reta (o que Einstein demonstrou que, geralmente, não é verdade, mas é muitas vezes uma aproximação adequada), etc..
Considere uma bela imagem como esta, da famosa nebulosa planetária NGC 2818, que fica na constelação do Compasso, obtida pelo telescópio espacial Hubble em 2008.
Tão bonita e tão falsa! Essas belas cores não são reais! São resultado de uma técnica, chamada justamente de falsa cor. A imagem original foi processada em computador, de forma que o vermelho representa emissões de nitrogênio, verde representa hidrogênio e azul, oxigênio!
Apesar disso, apesar desse processamento prévio, apesar de resultar de uma série de teorias que embasam esse processo, ela, tal como tantas outras semelhantes, servirá de 'dados' para astrofísicos que farão inúmeros estudos a partir delas, formularão novas teorias e hipóteses, etc.
Por outro lado, como se sabe, a Teoria da Relatividade Geral, de Einstein, tem, dentre outras consequências, que a matéria (energia) encurva o espaço-tempo à sua volta. Um espaço-tempo vazio de matéria continua sendo bem descrito pela velha a boa geometria euclidiana. Mas um espaço-tempo contendo matéria, como o nosso Universo, só poderá ser descrito por uma geometria em que as 'linhas retas' já não serão mais 'retas', em que a noção de 'paralelas' é diferente e em que a soma dos ângulos internos de um triângulo pode ser maior ou menor que 180°, uma geometria não euclidiana, portanto.
"ele perguntava-se se um triângulo assinalado nas estrelas e por conseguinte de uma enorme superfície, manifestaria a diminuição de superfície apontada pela geometria lobatchewskiana [uma das alternativas à geometria euclidiana]." (BACHELARD, O Novo Espírito Científico).
"[…] não admitia o caráter crucial de uma tal experiência. Se ela resultasse, dizia ele, decidir-se-ia desde logo que o raio luminoso sofre uma ação física perturbadora e que já não se propaga em linha reta. Em todo o caso, salvar-se-ia a geometria euclidiana." (BACHELARD, O Novo Espírito Científico)
"Depois de Poincaré demonstrar a equivalência lógica das várias geometrias, afirmou que a geometria de Euclides continuaria a ser sempre a mais cômoda e que em caso de conflito desta geometria e a experiência física se deveria preferir sempre modificar a teoria física em vez de mudar a geometria elementar." (BACHELARD, O Novo Espírito Científico)
Ou seja, Poincaré preferia alterar a evidência experimental, e consequentemente a teoria, para manter a realidade de uma descrição euclidiana, "mais cômoda" para ele. Isto é, ele não aceitava que a Realidade fosse diferente de sua convicção!
Segundo Bicudo e Rosa,
"a ciência nos traz uma representação do real, porém em sua perspectiva e segundo seus métodos. Isso não dá conta da experiência vivida" (BICUDO e ROSA, Realidade e Cibermundo, p. 22)
Para esses autores,
"O real da ciência não abraça a totalidade do real, [...] dos modelos abstratos, que recorrentemente se distanciam da experiência do real vivido, a qual, por si, é imprecisa, afastando-se, dessa maneira, de um primeiro plano ou nível de conhecimento." (BICUDO e ROSA, Realidade e Cibermundo, p. 22)
De fato, como veremos na aula As Contribuições de Galileu e Newton - Parte 3, Galileu percebeu que, para estudar a queda dos corpos, teria que abstrair quaisquer interferências, tendo que trabalhar com objetos ideais (KOYRÉ, 1992, p. 96-98):
Quando Galileu “estuda o movimento no vazio, etc., ele coloca-se imediata e conscientemente fora da realidade. Um plano absolutamente liso, uma esfera absolutamente esférica, ambos absolutamente duros: são coisas que não se encontram na realidade física. Não são conceitos que se tirem da experiência.” (KOYRÉ, 1992, p. 98)
Segundo Bicudo e Rosa, é a isso que Merlau-Ponty se refere quando diz
"a ciência é um conhecimento do mundo de segundo nível" (MERLAU-PONTY, Fenomenologia da percepção, citado em BICUDO e ROSA, Realidade e Cibermundo, p. 22)
sugerindo que
Em outras palavras, a realidade da Ciência, ou seja, da comunidade científica, é construída por objetivação das percepções subjetivas individuais dos cientistas que a compõe.
Assim, vimos que, para a Ciência, Realidade é um conceito complexo, construído, sujeito a escolhas. É muito diferente do uso ingênuo que o senso comum lhe atribui em expressões tais como "realidade social", "realidade brasileira", "realidade do aluno", etc.
Referências
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